terça-feira, 29 de julho de 2008

Cada dia entendo menos...

Não entendo nada da vida.

Cada dia que avança entendo menos da vida.

Contudo, há horas, as horas perdidas - e só essas - que queria tornar a viver e a perder.

Deus, a vida, os grandes problemas, não são os filósofos que os resolvem, são os pobres vivendo.

O resto é engenho e mais nada.

As coisas belas resumem-se a meia dúzia: o tecto que me cobre, o lume que me aquece, o pão que como, a estopa e a luz.

RAUL BRANDÃO, Memórias, I, prefácio.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Encontro

Como me gratificou aquele olhar!
E aquele toque, suave,
Aquela mão sobre o meu braço!
Olhei e vi uma lágrima
Que, envergonhada,
Dava brilho aqueles olhos,
Velhinhos, mas tão vivos!
“Que gentil, disse-me!
Ninguém repara no outro,
A nosso lado, quase nunca.
Obrigado, o meu domingo,
Vai ser melhor,
Simplesmente mais alegre,
Alguém reparou que existo,
Velhinho, mas vivo”.
E o meu dia valeu a pena!

Clementina

Caparide, 20 de Julho de 2008

domingo, 27 de julho de 2008

Quando eu morrer

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?

Alberto Caeiro

Falas de civilização...

Falas de civilização...

Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as coisas humanas postas desta maneira,
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seriam melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as coisas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!

Alberto Caeiro

meu amigo esta longe

nem um poema nem um verso nem um canto
tudo raso de ausencia tudo liso de espanto
amiga noiva mãe irmã amante
meu amigo esta longe
e a distancia é tão grande.

nem um som nem um grito nem um ai
tudo calado todos sem mãe nem pai
amiga noiva mãe irmã amante
meu amigo esta longe
e a tristeza é tão grande

ai esta mágoa ai este pranto ai esta dor
dor do amor sozinho, o amor maior
amiga noiva mãe irmã amante
meu amigo esta longe
e a saudade e tao grande.

Jose Carlos Ary dos Santos

Alberto Caeiro

No ano em que se comemora Fernando Pessoa acho optimo para começat e daí que envie um heteronemo
O guardador de rebanhos (poema XXXVI)
E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...

Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira.
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao colo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.



25 de Junho de 2008 9:12

sexta-feira, 25 de julho de 2008

o meu país

Este é o meu país.
Onde nasci,
Cresci e aprendi.
Na família,
Na escola, na rua.
Incorporei valores,
Apropriei conhecimento
Formei a minha personalidade
Fiz-me gente!
E este, hoje, continua o meu país!
Mas não foi nele que nasci,
Os meus valores?
Estão forma da norma,
Referenciais?
Quem os tem?
Onde se adquirem?
Este não é o meu país,
Mas é nele que eu vivo!
Respeito? Ser solidário?
Amizade?
São valores que incorporei
No meu país, que já não é!
Quero o meu país de volta.
Quero respeito e liberdade
Solidariedade e amizade,
Quero verdade, segurança,
Quero ter orgulho
Do país que ajudei a construir.
Mas um modelo que não é este!
Quero o meu país de volta,
Um país livre e fraterno.

Clementina

Caparide, 24 de Julho de 08

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Conheço o Sal

Conheço o Sal

Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousando em suor nocturno.

Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minha mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.

A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.

Jorge de Sena

Pérola de Lágrima

Pérola de Lágrima

A tua ultima lágrima
Foi para mim!
O último sopro de vida
Senti-o no coração!
A última palavra,
A quem a deste?
Esperava-a ansiosa
Apurava o ouvido
Concentrava a atenção!
Porque me deixaste assim?
Sei, de um saber certo,
Que estás comigo,
Me acompanhas no dia a dia,
Nas horas difíceis,
Me ajudas a decidir,
Celebras as minhas vitórias!
Mas, porque me deixaste assim?
O telefone continua a tocar,
Sei que me escutas,
Reflectes comigo, eu sei!
Será que estás atenta?
Ouves as minhas confidências,
Aquilo que só de diz à Mãe?
Guardo a tua lágrima,
Retirada com cuidado,
Como uma pérola!
Não a vejo, não a toco,
Mas é a minha jóia mais preciosa!

Caparide, Agosto de 2002

flores do meu jardim

Flores do meu jardim

Nas flores do meu jardim
Surgiu mais uma!
Não a semeei, não a plantei,
Não sei como nasceu!
E se vai crescer.
Mas agradou-me,
É diferente e singela!
Emergiu, suavemente,
E floriu,
No meu jardim secreto.
Vou regá-la, com cuidado
Vou amá-la ao meu jeito.
Permitir-lhe que cresça
Qual flor campestre
Num campo repleto,
De afectos,
Que é o meu jardim!

Clementina

Caparide, 12-07-08

PRESENÇA AFRICANA

PRESENÇA AFRICANA

E apesar de tudo,
ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sagrou.
Mãe-África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou,
a irmã-mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto!...
(...)
Sem dores nem alegrias,
de tronco nu e musculoso,
a raça escreve a prumo,
(...)
Ainda sou a mesma!
Ainda sou
a que num canto novo,
pura e livre,
me levanto,
ao aceno do teu Povo!...

ALDA LARA (Angola)

terça-feira, 22 de julho de 2008

Liberdade

Liberdade
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O Sol doira
Sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa

segunda-feira, 21 de julho de 2008

DESABAFOS

por Lurdes Barata - Segunda, 21 Julho 2008, 16:34
Do João Alexandre Melo, de 2004, deixo-vos:
DESABAFOS

Paisagens frias de rios crus, que voam sobre um mar de vento;
É triste, mas vai na alma de quem sente, um fogo suave e puro
como a pedra,
Pedra de terra firme; tão firme que se desfaz ao mais pequeno
grito de aflição,
Uma ruína de tentação envolvida num espaço de pureza abstracta,
Não será disso que se trata? Pureza abstracta?
Longe se sonhou com a certeza dos pensamentos, e se aprendeu com
a coragem do ser.
Avancemos olhando para trás como alguém que só vislumbra o
Longínquo horizonte.
Assim crescemos, nascemos, sentimos o verso do que não rima, a chama do que não arde, o mar do deserto; o frio do calor, a chuva sem nuvem.
Estranho?
Não! É a vida, o homem, o mundo, a guitarra sem cordas,
a noite de luz, o sol da escuridão, a estrela aos pés.
É o ser ...tão forte quanto Roma,
tão fraco como uma pena caída no chão que se
pergunta infinitamente porque não voa sozinha!
Num manto de vida se cai, mas dele se levanta para toda a sua
eternidade.
Bastou o sorriso.



Um abraço.
Lurdes Barata

domingo, 20 de julho de 2008

Amigo

Amigo és tu que me olhas
Me escutas sem que fale,
Entendes o meu olhar
Compreendes o que faço
Apoias a minha luta!
Amigo és tu que me sentes
Me envolves no teu abraço
Estimulas os meus passos
Sofres a minha tristeza
Vives a minha alegria!
Amigo és tu que a meu lado
Caminhas, passo a passo,
Vencendo cada barreira
Na busca de um mundo melhor!

Clementina

Nazaré 12-06-2005

David Mourão Ferreira

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolvam tantos anos.

Bertold Brecht

Dificuldade de governar

Todos os dias os ministros dizem ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol
Sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
Ele nasceria por certo fora do lugar.

E também difícil, ao que nos é dito,
Dirigir uma fábrica. Sem o patrão
As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem.
Se algures fizessem um arado
Ele nunca chegaria ao campo sem
As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem,
De outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que
Seria da propriedade rural sem o proprietário rural?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.

Se governar fosse fácil
Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas
Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários.
E só porque toda a gente é tão estúpida
Que há necessidade de alguns tão inteligentes.

Ou será que
Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira
São coisas que custam a aprender?

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Génesis

Génesis

De mim não falo mais: não quero nada.
De Deus não falo: não tem outro abrigo.
Não falarei também do mundo antigo,
pois nasce e morre em cada madrugada.

Nem de existir, que é a vida atraiçoada,
para sentir o tempo andar comigo;
nem de viver, que é liberdade errada,
e foge todo o Amor quando o persigo.

Por mais justiça...-Ai quantos que eram novos
em vão a esperaram porque nunca a viram!
E a eternidade...Ó transfusão dos povos!

Não há verdade: o mundo não a esconde.
Tudo se vê: só se não sabe aonde.
Mortais ou imortais, todos mentiram.

Jorge de Sena

Cesário Verde

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer

Eu que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa de um café devasso,
Ao avistar-te, há pouco fraca e loura,
Nesta babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorrestes um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, sudável.

«Ela aí vem!» disse eu para os demais;
E pus me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez que não o suspeites! -
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.
...
Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar o teu peito.

Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.

«Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!»
De repente, parastes embaraçada
Ao pé de um numeroso ajuntamento,

E eu, que urdia estes frágeis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Um pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, então que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.

E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés de fel como um sinistro mar!
Cesário Verde

Corrida!

“Na louca correria do dia a dia
Passamos, pela vida, e não vimos!
Corremos.
À procura não sei do quê!
E não vimos
Aquele que à nossa beira
Chama por nós.
Aquele para quem basta um olhar,
Uma palavra,
Uma breve paragem
Na louca e desordenada correria,
Para se sentir vivo!
Passamos e não vimos
A flor que desabrocha,
A árvore que floresce,
A criança que brinca,
O amigo,
O mundo que gira
A nossa volta!
Mas é tempo,
É sempre tempo,
De nos determos na vida!
De vivermos.
De edificar, sem pressas,
Em cada momento,
O mundo que nós queremos!

Clementina
Nazaré, 14 de Agosto de 2004

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Faz-me o favor...

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor -muito melhor!-
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

Mário Cesariny

terça-feira, 15 de julho de 2008

Operário em construção

Operário em construção

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as asas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De facto como podia
Um operário em construção
Compreender porque um tijolo
Valia mais que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão que sofreria
Não fosse eventualmente
Um operário em construção.
Mas ele desconhecia
Esse facto extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão
Era ele quem fazia
Ele, um humilde operário
Um operário em construção.
Olhou em torno: a gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou a sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo de impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro dessa compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão-
O operário adquirir
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Começou a dizer "Não"
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que a sua marmita
Era o prato do patrão
Que a sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que o seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que a sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse:
Não! E o operário fez-se forte
Na sua resolução

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
" - Convençam-no" do contrário
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isto sorria.

Dia seguinte o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu por destinado
Sua primeira agressão
Reve o seu rosto cuspido
Teve o seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O Operário disse. Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguirão
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo contrário
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- " dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-a a quem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer Não."
Disse e fitou o operário
Que olhava e reflectia

Mas o que via o operário
O patrão nunca veria
O operário via casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objectos,
Produtos, manufacturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do patrão
E em cada coisas que via
Misteriosamente havia
A marca da sua mão.
E o operário disse: Não!
Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
E um grande silêncio fez-se
Dentro do meu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fracturas
A se arrastarem no chão
E o operário ouviu a sua voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção

ELOGIO DA DIALÉCTICA

ELOGIO DA DIALÉCTICA

A injustiça avança hoje a passo firme.
Os tiranos fazem planos para dez mil anos.
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são.
Nenhuma voz além da dos que mandam.
E em todos os mercados
Proclama a exploração:
Isto é apenas o meu começo.
Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem:
Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos.

Quem ainda está vivo nunca diga: nunca.
O que é seguro não é seguro.
As coisas não continuarão a ser como são.
Depois de falarem os dominantes
Falarão os dominados.
Quem pois ousa dizer: nunca?
De quem depende que a opressão prossiga? De nós.
De quem depende que ela acabe? Também de nós.
O que é esmagado, que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que chegou, que há aí que o retenha?
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã.
E nunca será: ainda hoje.

Exposição

Não foram as ondas do mar,
Minhas confidentes e amigas,
Não foi o azul do céu
Que me encandeia e ilumina,
Nem sequer as árvores,
Agitadas pelo vento,
Que me tranquilizaram!
Não foi o passado, meu refúgio,
Nem o futuro que desconheço!
Mas foi o ontem,
De que fazias parte,
Que me presenteou.
A doçura do teu olhar,
Que tão bem disfarças!
A sensibilidade,
Que não transmites
Mas que eu percebi e senti!
Que me fizeram sair do meu canto
Do meu refúgio, partilhado,
Com as ondas e o infinito!
E hoje, neste mundo aberto,
Desprotegida, exposta,
Senti que foi paixão.
Efémera? Seguramente.
Violenta? Talvez!
Mas plena de vitalidade!
Cega, surda, mas… …
O melhor estado de alma que conheço!

Caparide 13 de Julho de 2008

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Os meus amigos

Os meus amigos

No sossego do meu canto, que me encanta,
O desassossego da ausência que teima em dominar-me!
Solto-me, liberto-me, desço ao meu refúgio de eleição!
E aí, perante a imensidão do mar,
Enfrento a minha pequenez!
Olho o céu, de um azul sem par, reflectido nas águas,
E enfrento a distância!
Quero caminhar, com rumo!
Mas o mar, meu confidente, assusta-me,
O céu, com a sua beleza, intimida-me!
O esforço cansa-me.
Procuro, luto, com persistência!
Traço um rumo e intensifico a vontade,
Aproveito as vagas que beijam a areia
E deixando-me envolver, balanço-me,
Suavemente!
Sonhando que perto,
Na crista mais discreta
Alguém me espera.
Estendo os braços e agarro o céu
Que ao abraçar as ondas
Me envolve no seu abraço!
Reafirmo a minha pequenez,
E aninho-me frágil, timidamente,
Naquele abraço!
A força chega, a determinação,
Um forte querer de um dia a dia, pleno, intenso!
E acredito, que perto ou longe, me encontrarei!
E serei eu, a mulher que nasceu para ser feliz!
Forte, corajosa, determinada a enfrentar medos e nãos!
E assim enfrentarei o mundo,
E não estarei só!
A meu lado estarás tu e tu e tu,
Estarão aqueles que comigo fazem este percurso,
Os meus Amigos!

Clementina
Caparide, 25-05-2008

Apeteceu-me

Apeteceu-me

Hoje apeteceu-me.
Apeteceu-me aquele abraço
Que não trocámos, o beijo que não demos!
O teu sorriso, o teu olhar.
Apeteceu-me a tua presença!
A cumplicidade implícita de quem se sente,
E se entende!
Apeteceu-me a tua voz, o teu cheiro
Distante e presente,
Que não me deixa e me escuta.
Ao longe vejo-te e sinto-te a meu lado.
Sereno e inquieto.
Apeteceu-me o beijo que não dei
A uns lábios oferecidos!
Apeteceu-me a tua ternura,
A tua procura,
A alegria de estarmos juntos.
Hoje apeteceu-me
Que ontem voltasse
Hoje, amanhã, todos os dias.
Apeteceu-me estar contigo,
Hoje apeteceu-me
Que ontem não acabasse.

Clementina
Caparide, 10-07-2008

Divertimento com sinais ortográficos

...
Em aberto, em suspenso
Fica tudo o que digo.
E também o que faço é reticente...
:
Introduzimos, por vezes,
Frases nada agradáveis...
.
Depois de mim maiúscula
Ou espaço em branco
Contra o qual defendo os textos
,
Quando estou mal disposta
(E estou-o muitas vezes...)
Mudo o sentido às frases,
Complico tudo...
!
Não abuses de mim!
?
Serás capaz de responder a tudo o que pergunto?
( )
Quem nos dera bem juntos
Sem grandes apartes metidos entre nós!
^
Dou guarida e afecto
A vogal que procure um tecto.

Alexandre O'Neill

domingo, 13 de julho de 2008

Pablo Neruda

Já não se encantarão os meus olhos nos teus olhos,
já não se adoçará junto a ti a minha dor.

Mas para onde vá levarei o teu olhar
e para onde caminhes levarás a minha dor.

Fui teu, foste minha. O que mais? Juntos fizemos
uma curva na rota por onde o amor passou.

Fui teu, foste minha. Tu serás daquele que te ame,
daquele que corte na tua chácara o que semeei eu.

Vou-me embora. Estou triste: mas sempre estou triste.
Venho dos teus braços. Não sei para onde vou.

...Do teu coração me diz adeus uma criança.
E eu lhe digo adeus.
Pablo Neruda

sábado, 12 de julho de 2008

Eugénio de Andrade

Urgentemente

É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer.

Eugénio de Andrade

Pablo Neruda

A DANÇA
Não te amo como se fosse rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo secretamente, entre a sombra e a alma.
.
Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascender da terra.
.
Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo directamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,
.
Se não assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que a tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.
Pablo Neruda

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Meu amor, meu amor

Meu amor meu amor
meu corpo em movimento
minha voz à procura
do seu próprio lamento.

Meu limão de amargura meu punhal a escrever
nós parámos o tempo não sabemos morrer
e nascemos nascemos
do nosso entristecer.

Meu amor meu amor
meu nó e sofrimento
minha mó de ternura
minha nau de tormento

este mar não tem cura este céu não tem ar
nós parámos o vento não sabemos nadar
e morremos morremos
devagar devagar.

José Carlos Ary dos Santos

O Medo

Drummond de Andrade




'O MEDO

Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.

Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em S. Paulo.

Fazia frio em S. Paulo....
Nevava.
O medo, com sua capa,
Nos dissimula e nos berça.

Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno.
De nós, de vós; e de tudo.
Estou com medo da honra.

Assim nos criam burgueses.
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?

Vem harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.

Fazemos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.

E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.

O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.

Tenhamos o maior pavor.
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,

eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.'

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Loucura

és tu
apenas tu
não queres assumir
mas és tu
és tu quem me inquieta
e desfaz a minha sombra
não faço questão da tua presença
maldita sejas
a ti nada te peço
nem nada espero
por isso fujo
cobardemente fujo
fujo sem parar
para bem longe
bem longe do sonho
tão longe que deixo de me ver
mesmo assim tu persegues-me
devoras-me a alma
e retiras-me o desejo
e o clamor
sem suspirar sequer
és tu
apenas tu
desprezível maldição

José Gomes Ferreira

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Sacode as nuvens...

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar,
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que tu respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.

Sophia de Mello Brayner Andersen

terça-feira, 1 de julho de 2008

Brecht

" Não há pior analfabeto
Que o analfabeto político.
Ele não ouve,
Não fala,
Nem participa
Dos acontecimentos políticos.

O analfabeto político
É tão burro
Que se orgulha de o ser e,
De peito feito,
Diz que detesta a política.

Não sabe, o imbecil,
Que da sua ignorância política
É que nasce a prostituta,
O menor abandonado,
E o pior de todos os bandidos
Que é o político vigarista,
Desonesto,
O corrupto
E lacaio dos exploradores do povo."



Bertolt Brecht (1898-1956)

Poesia Inédita de Fernando Pessoa

Poemas:
• A pálida luz da manhã de inverno
• A 'sperança, como um fósforo inda aceso
• A tua voz fala amorosa...
• Aqui está-se sossegado
• Aqui neste profundo apartamento
• Árvore verde
• As lentas nuvens fazem sono
• As nuvens são sombrias
• A tua carne calma
• Basta pensar em sentir
• Bem, hoje que estou só e, posso ver
• Bóiam farrapos de sombra
• Brincava a criança
• Cai chuva do céu cinzento
• Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa
• Caminho a teu lado mudo
• Cansado até dos deuses que não são
• Cansa ser, sentir dói, pensar destruir
• Canta onde nada existe
• Ceifeira
• Cheguei à janela
• Chove. Que fiz eu da vida?
• Clareia cinzenta a noite de chuva...
• Começa, no ar da antemanhã
• Como às vezes num dia azul e manso
• Como é por dentro outra pessoa
• Como nuvens pelo céu
• Como um vento na floresta
• Criança, era outro
• De aqui a pouco acaba o dia
• Deixa-me ouvir o que não ouço
• Deixei atrás os erros do que fui
• Deixem-me o sono! Sei que é já manhã
• Deixei de ser aquele que esperava
• Deixo ao cego e ao surdo
• Depois que o som da terra, que é não tê-lo
• Depois que todos foram
• Desfaze a mala feita pra a partida!
• Desperto sempre antes que raie o dia
• Deus não tem unidade
• Deve chamar-se tristeza